Heloisa Ribeiro Lopes*
Agosto, 2021
Nos últimos dias temos visto a #delirioscomunistas como um dos assuntos mais comentados das redes sociais após a declaração de uma determinada pessoa pública, onde se posiciona contrariamente à polarização formada no país entre apoiadores do Presidente Jair Bolsonaro e aqueles grupos que ela denomina de Comunistas.
Há muito se tem confundido no Brasil os ideários de esquerda com o modo de organização social comunista e essa confusão merece ser qualificada, eis que serve para que sejam levantadas vozes das mais fantasiosas, como se de fato existisse alguma dita “ameaça” comunista ao país, argumentos levantados pela extrema direita para tentar impedir as necessárias implementações de políticas econômicas heterodoxas imprescindíveis para o retorno do desenvolvimento econômico e social brasileiro.
Além da necessária qualificação dessa ideia que vem sendo apaixonadamente levantada por muitos extremistas de direita, também se mostra necessário desconstruir a demonização desferida contra o modo de organização comunista desde seu nascedouro.
De uma análise mais substancial da situação vivenciada na história mundial, todo esse ódio contra o comunismo nada mais significa que a tentativa de aniquilação dos legítimos anseios da classe proletária de não ter seus direitos expurgados do debate político – debate este que deveria ser dialético e plural – e de não ser tolhida dos meios necessários à sua reprodução e de sua família.
Nas preciosas lições de Braudel (1986), o capitalismo encontra na economia de mercado importante base para seu nascedouro e disseminação, sendo fruto da superação de uma sociedade feudal baseada no autoconsumo que transitou para as trocas promovidas pela figura do mercador, com objetivo marcadamente comercial.
É dessa transição da vida material para a vida econômica que exsurge o ambiente propício para o capitalismo, mas não é só; para além da existência do mercado – instituição social que liga produtores e consumidores -, o capitalismo também necessita do mercador, aquele que na Europa mercantilista (Século XV a Século XVIII) promovia grandes negócios por meio de navegações, intermediando, portanto, as transações entre os produtores e os consumidores e extraindo daí grandes lucros devido a sua dominação do mercado e influência sobre os preços, dando primaria ao private market (transações individuais) em detrimento do public market (mercado público tradicional).
O processo de desenvolvimento capitalista passa por diversas facetas ao longo da história devido a necessidade constante de sua reinvenção, para que não seja superado por outros modos de produção que atendam a importantes interesses que não sejam os dominantes de determinada época, contudo alguns pontos comuns podem ser observados dessas mais diferentes miríades do capitalismo.
Dentro desses elementos comuns que se encontra no capitalismo desde seu nascedouro, encontramos a expropriação dos meios de produção dos trabalhadores que deixam de ser os detentores dos meios materiais para produzir e passam a se submeter a ordens de seu empregador para a criação e o controle de qualidade da mercadoria (aqui também se mostrando presente a figura do Estado Nacional), pelo que o então trabalho livre passa a ser substituído por incansáveis e inicialmente desumanas jornadas de trabalho nas fábricas burguesas.
Em um contexto de aceleramento dos cercamentos promovidos, em boa parte da Grã-Bretanha, em que muitos camponeses foram expulsos da terra de uso coletivo em que viviam e trabalhavam, e à medida em que avançava a expropriação dos meios de produção que o trabalhador utilizava para poder exercer seu ofício, este trabalhador necessariamente precisava se submeter a tais jornadas de trabalho exaustivas a troco de salários que não lhe garantiam uma vida digna para si e sua família, o que altera totalmente a conjuntura social da época, momento ao qual há a transição de uma economia, à época ainda feudal, que se lastreava no autoconsumo e de forma muito incipiente em pequenas trocas entre os camponeses e os senhores feudais, para uma economia mercantil, surgindo assim o capitalismo comercial.
Ao analisar o processo produtivo de uma fábrica de alfinetes, Smith (1983) em A Riqueza das Nações escrito em 1776 concluiu em seu tratado que a especialização cada vez mais acentuada do trabalho gerava produtividade infinitamente maior do que a manufatura empreendida por uma única pessoa ao longo de toda a cadeia produtiva.
Podemos considerar a especialização do trabalho uma fundamental característica do modo de produção capitalista desde seu advento, eis que um dos grandes objetivos do capitalismo é justamente o aumento da produtividade visando a obtenção de maiores lucros.
E é da obtenção de grandes lucros que encontramos aquele que acreditamos ser o objetivo primordial do capitalista, que é o de buscar crescente acumulação de capital, que Marx (1996) identifica, em apertada síntese, como a ampliação do capital, ou seja, expropriação da mais-valia produzida pelo trabalhador a fim de emprega-la não somente no ciclo constante e periódico do capital (reprodução simples), mas sim em uma produção de mercadorias em maior escala ante a ampliação do capital inicial, quer em máquinas, quer em matérias-primas, quer em contratação de novos trabalhadores.
Na medida em que parte do trabalho empregado pelo trabalhador, isto é, a mais valia, é expropriada pelo capitalista para a obtenção de seus lucros e considerando os baixos salários que muitas vezes eram praticados ao mero nível de subsistência, a acumulação do capital passa a gerar inúmeros conflitos de classe, notadamente pelas práticas nocivas impostas pelos capitalistas aos trabalhadores que muitas vezes contava com o apoio do Estado.
Vemos assim que o capitalismo cria uma tensão permanente entre duas classes sociais, capitalistas e proletariado, e em boa parte da história, senão em toda ela, a classe vitoriosa sempre foi a capitalista. A expropriação da terra, dos meios de produção e da própria criatividade dos seres humanos promovida pelo capitalismo foi uma das mais brutais formas de violência que a história já experenciou para o surgimento de um meio de produção, que para predominar sobre o sistema então vigente fez o povo se ver privado da sua moradia, de seu ofício, de sua possibilidade de produzir para o próprio sustento e de sua família, da possibilidade de usar sua criatividade em substituição a trabalhos cada vez mais monótonos e mecanizados, ou seja, um povo que se viu tolhido de toda uma condição de existência.
O capitalismo não se esgota aí. Como dito acima esse meio de produção precisa de tempos em tempos se reinventar para que não seja superado por ideários de uma sociedade mais igualitária propugnados pelos tão amesquinhados socialistas e comunistas e ao se reinventar, o capitalismo muitas vezes acaba trazendo voz a uma extrema direita vilipendiadora dos mais básicos e imprescindíveis direitos humanos em prol da obtenção de uma suposta melhora da economia e obtenção do bem-estar para seus grupos apoiadores, algo que a história já vivenciou com os exemplos do fascismo e do nazismo que emergiram de uma direita radical extraída de dentro do próprio capitalismo.
E o comunismo muito malfadado e historicamente perseguido mundo a fora é uma importante via alternativa de pensamento ao capitalismo tal qual praticado, sendo um movimento que surge da própria classe trabalhadora com o intuito de pôr obstáculos ao crescimento de um capitalismo pouco comprometido com a melhoria da qualidade de vida dos seres humanos.
A explicação não é tão simples e demanda uma análise aprofundada de diversos sociólogos e pensadores de história econômica pelo que não há neste artigo qualquer pretensão de exaurir o tema, mas sim de colocar a visão desta autora sobre esses conflitos diários que podemos ver entre a dita classe burguesa e proletária que aqui resumo entre ricos e pobres.
Tais conflitos no Brasil têm superado o mínimo do razoável que se espera de um debate sério e compromissado com a melhoria da situação das pessoas e do país, eis que ingressou na perigosa sanha destruidora propugnada pela extrema direita, que anos atrás nos legou o fascismo e o nazismo.
No Brasil estamos chegando no fim do poço com este projeto de país lançado pela extrema direita e o povo não tem mais como enxergar isso calado. Chega ao azo do absurdo assistirmos Chefes de Estado defender terra plana, cloroquina, desnecessidade de uso de máscaras sem a ampla vacinação, recusa de compra de determinada vacina específica, perseguição a jornalistas, tentativa de compra de vacina da covid-19 por valores aparentemente superfaturados, dentre tantos outros absurdos e abusos que quase que diariamente chegam ao nosso conhecimento pela imprensa.
Não podemos esquecer que sem qualquer debate político sério e por intermédio de uma medida provisória aprovada pelo Congresso Nacional em meio a uma grave crise hídrica vivenciada pelo país o governo federal autorizou a venda da Eletrobrás, importante empresa estatal que presta suas atividades com excelência, em um setor extremamente estratégico a garantir a soberania do país.
E o pior é que muitos estão assistindo esse desmonte do Estado brasileiro calados, e quando não calados, acabam por colocar o foco de nossos problemas em um suposto “delírio comunista”, modo de organização social que o Brasil sequer está próximo a implementar e que na realidade é utilizado como argumento falacioso perfeito para que a extrema direita possa colocar em prática seu projeto de poder.
Quanto a nós, “comunistas revolucionários”, pecha que se tem atribuído a todos os que pensam diferente desses devaneios criados pela extrema direita – como se ser um comunista fosse um grande mal a ser combatido pelo grande bem capitalista -, qual é o projeto de Brasil que nós queremos?
O fato é que o Brasil precisa de ideias econômicas disruptivas para sair desse caos que nos foi confiado por muitos governos pouco compromissados com o desenvolvimento do país, e acredito que estas devem se dar com o objetivo de pôr um freio à ortodoxia clássica que no Brasil é mais compromissada com a manutenção do status quo, com interesses rentistas, de grandes banqueiros e com a venda do país, do que com o povo brasileiro, com a soberania nacional e com o efetivo bem-estar social através do fortalecimento não somente de nossa indústria, mas também de nossas instituições democráticas.
Aqui há de se defender a participação de um Estado forte que deve ser democrático e de direito, algo imprescindível para colocar o Brasil rumo ao crescimento econômico com uma menor desigualdade social, proporcionando assim o aumento de renda às famílias, eis que a história já comprovou que não são os interesses capitalistas que promoverão um maior equilíbrio entre as classes, algo que o Coronavírus tem diariamente escancarado com o crescimento exponencial da riqueza dos mais ricos e da pobreza dos mais pobres.
E enquanto vias alternativas a esse emaranhado de destruição que vivenciamos no país, acredito que não só o comunismo como também o socialismo são muito bem vindos à pauta do debate político-econômico para que deixemos de nos acomodar com aquilo que nos é posto, como se fosse algo imutável e possamos repensar a sociedade em que queremos viver.
Por mais que particularmente esteja longe de aderir a todas as ideias comunistas e socialistas, é inegável que a proposta de que a todos seja garantido o direito de participação do debate político e de usufruir dos bens materiais criados pela própria força de trabalho e de bens provenientes da natureza, com o estabelecimento de uma maior igualdade entre as pessoas, quiçá a própria eliminação das classes, é algo que deveria ser defendido por todo e qualquer modo de organização social. Me recuso a acreditar que é somente a mim e a outros poucos ditos “comunistas” – se é que se pode chamar assim quem é contra as barbáries do atual governo, e, já vimos, não é minimamente adequada essa colocação – que indigna ver pessoas nas ruas passando por toda a sorte de desalento e desesperança.
Há de se concluir que esses tais “#delirioscomunistas”, muitos dos quais são traduzidos nas redes sociais como anseios por mais vacinas, mais segurança, mais comida na mesa, mais emprego, mais renda às famílias, menos desigualdade etc., se mostram fundamentais para retirar o Brasil da rota rumo ao fim do poço que nos encontramos desde pouco antes do golpe sobre a então Presidenta eleita Dilma Rousseff, servindo como uma luz a iluminar a escuridão que o país se encontra desde que a ortodoxia voltou a tomar conta do cenário político-econômico nacional.
NOTAS
*Aluna de graduação em Economia na UFPR e estudante voluntária do PET Economia UFPR.
REFERÊNCIAS
BRAUDEL, Ferdnand. A dinâmica do capitalismo. Tradução de Carlos da Veiga Ferreira. 2ª ed. Lisboa, Teorema, 1986.
MARX, K. ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.
MARX, K. – O capital. São Paulo: Nova Cultural. Série Os Economistas, 1996, v.2.
SMITH, A. A Riqueza das Nações. São Paulo: Nova Cultural, 1996, v. 1.