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O mundo após o choque da pandemia da Covid-19: uma análise conjuntural

Milena Martins do Nascimento*

Setembro, 2021

A Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou, em março de 2020, o surto da Covid-19 como uma pandemia, e desde então surgiram desafios que impactaram e ainda interferem no cotidiano e nas atividades produtivas em nível mundial. A principal recomendação, e, por sua vez, a medida mais eficiente para a inibição do contágio – o distanciamento social – limitou as interações de mercado, especialmente no setor de Serviços, que possui expressivas porcentagens de contribuição para o PIB (como é o caso da economia brasileira). Após um ano e meio diante da nova realidade imposta pela crise sanitária, o desequilíbrio entre as potências centrais e emergentes no combate ao vírus e por consequência, na retomada da economia, se dá em grande parte pelos caminhos distintos na aplicação das políticas fiscal e monetária, e escancara o crescimento expressivo da desigualdade social.

A dimensão atrelada à retração da economia neste período é comparada à da Grande Depressão de 1930, de acordo com a Carta de Conjuntura do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Com base nos dados mais recentes, trazidos pelos últimos relatórios sobre a situação mundial nos dois primeiros trimestres de 2021, a presença da vacinação, assim como os pacotes de estímulo fiscal, configuram o tom otimista e as expectativas elevadas para o retorno da vida normal em níveis pré-pandemia. Apesar de os dados mostrarem aspectos relevantes de recuperação, a realidade discrepante entre os países e a presença de sequelas irreversíveis geradas pela crise demandam atenção para uma análise crítica e concreta dos fatos.

A implementação da Indústria 4.0 e a Revolução Digital, que não só afetam as grandes corporações, como também a vida em sociedade em inúmeras camadas, se instauram com ainda mais força com a chegada dos desafios impostos pelo isolamento. A migração das compras presenciais para o mundo online, as famílias trocando o consumo de serviços por bens – garantindo o desempenho do setor Industrial que contrabalanceou as perdas do instável setor de Serviços – mostra que apesar de uma possível retomada, lida-se com uma recessão e uma recuperação em moldes distintos do que já se foi visto. A Indústria, geralmente a mais sensível nos períodos de crise, fortalecida e impulsionando a retomada dos demais setores, é um cenário longe do habitual – assim como os obstáculos a serem superados nesse sentido.

As economias analisadas pelos relatórios¹ (Estados Unidos, Europa e China) representam a maior parte dos avanços na reconstrução da atividade global; as três apresentam recuperação em 2021, mas o caminho percorrido desde 2020 é expressivamente diferente: os Estados Unidos, com a presença do pacote de estímulo fiscal do governo Biden, conseguiram reverter o trimestre recessivo do período inicial da pandemia, além de garantirem avanços significativos em pesquisas e desenvolvimento de vacinas, assegurando saldos positivos para o PIB nos meses seguintes. A Europa, mesmo contando com estímulo nas políticas macroeconômicas, lidou com a segunda onda de contágio de maneira mais severa, o que dificultou sua retomada no início do ano. A China, caindo no cenário de recessão antes das principais potências mundiais, já se recuperava quando o segundo trimestre atingiu em cheio o mundo ocidental – e se manteve com taxas de crescimento nos períodos seguintes. Dessa maneira, é possível dizer – e as estatísticas comprovam – que as nações que rivalizam a hegemonia econômica e que já travavam uma grande guerra comercial antes do surgimento da Covid-19 são as protagonistas do retorno ao crescimento global.

Segundo o IPEA, China e Estados Unidos crescerão em ritmo mais elevado que os demais países desenvolvidos, e obviamente, que os países em desenvolvimento, ocupando as parcelas de contribuição mais significantes para o PIB mundial dentre as previsões de 6% e 4,4% (para 2021 e 2022) cravadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Nesse sentido, é seguro afirmar que ambas as nações estão em estágio avançado de vacinação e poderiam estimular a reconfiguração das economias em processo mais demorado. Luciano Coutinho, professor de Economia Internacional pela UNICAMP², pontua que existem algumas condições para que seja possível vislumbrar este cenário, como por exemplo, que os dois países se unam em uma campanha que aumente a distribuição de vacinas pelo mundo. O que não se considera nesse caso, é que ambas as economias permanecem duelando pela liderança do poder econômico mundial, e uma aliança, por mais vantajosa que se apresente para o restante do globo, extravasa seus interesses individuais de desenvolvimento.

O próprio pacote de investimento de trilhões de dólares gerado por Biden, além de garantir seu apoio político para a reeleição em 2024, também pode ser considerado uma estratégia de se manter à frente do crescimento robusto chinês, e não só ele: a preocupação com a degradação ambiental leva ao Green New Deal, plano semelhante ao governo da China de descarbonização de energia como política efetiva para o longo prazo. Dessa forma, o mundo também encontra-se sob influência para repensar e agir quanto à redução da emissão de gás carbônico e futuramente apresenta-se como uma ameaça aos países que não aderirem a estratégias semelhantes de preservação do meio ambiente, podendo sofrer retaliações em acordos comerciais.

As sequelas deixadas pela Covid-19, independentemente de um processo de vacinação eficaz e do controle de contaminações, já são vistas principalmente nos países em desenvolvimento: o aumento do desemprego e do subemprego, que por sua vez levam mais pessoas abaixo da linha da pobreza e é responsável pelo crescimento desenfreado da desigualdade social, é o maior deles. A dificuldade encontrada por economias que já se deparavam com a crise, como no caso do Brasil, se agrava com a perda de postos de trabalho que migraram para a automatização e/ou demandam menos trabalhadores por função com a adesão de novas tecnologias, estimulada de maneira mais acentuada pelas regras de distanciamento na pandemia. Além de não ser possível visualizar a realocação desta oferta de mão de obra no curto prazo, o estímulo do setor industrial e o crescimento do consumo de bens pelas famílias gera falta de matérias primas, o que eleva os preços dos produtos e consequentemente, traz à mesa o aumento da inflação.

O que se chama de novo super-ciclo de commodities por alguns especuladores, na verdade, nada mais é do que esse desequilíbrio que tende a se estabilizar com a retomada da atividade dos Serviços devido ao processo de vacinação em massa. A inflação se apresenta como uma consequência, não demandando alterações nas políticas monetárias ao redor do mundo, mesmo quando se trata de um investimento nível Biden, com maior quantidade de dólares injetados na economia norte-americana. A diferença de uma nação desenvolvida lidando com o aumento inflacionário em relação à um país emergente, no entanto, é o centro da discussão. Com absoluta exceção da China, que apesar de ser um país considerado emergente detém uma política econômica distinta dos moldes do capitalismo ocidental, e, portanto, pode lidar com a estabilidade da inflação, os países da América do Sul, no entanto, não contam com a mesma sorte. O Brasil vem sentindo o aumento inflacionário restringir de maneira significativa o poder de compra de seus milhões de habitantes (a inflação acumulada alcançou a marca de 9,68% nos últimos 12 meses). Somado a isso, a falta de políticas de transferências de renda eficazes no combate a perda de recursos financeiros das famílias neste momento agrava o problema (a diminuição do auxílio emergencial comprova este ponto). Os obstáculos encontrados para os países em desenvolvimento se relacionam com a diminuição do Investimento Direto Estrangeiro, fazendo com que governos que possuem déficits expressivos em conta corrente e reservas baixas em dólar não consigam atuar com a implementação de política fiscal que contorne a diminuição de renda (como é o caso da Argentina). Sendo assim, o aumento do endividamento limita a autonomia das nações emergentes.

As possíveis conclusões desta análise conjuntural, portanto, evidenciam que a recuperação econômica sincronizada e que seria, de fato, necessária para retomar o mundo pré-pandemia está cada vez mais longe de possibilidade. No curto prazo e diante de realidades tão diferentes, a maioria dos países em desenvolvimento precisam de políticas que estão fora do seu alcance – e os países que poderiam contribuir nesse aspecto, não o farão, por motivos claros de foco em seus próprios territórios pela busca do poder econômico absoluto. O mais provável se dá pelo agravamento das desigualdades e dos conflitos no médio prazo, seja entre países centrais e periféricos, seja o aumento da pobreza extrema nestes últimos. Para enxergar a recuperação econômica de uma nação, é necessário muito mais do que dados, é necessária a aplicação de contextos.

NOTAS

* Aluna de graduação em Economia na UFPR e estudante bolsista do PET Economia UFPR.

REFERÊNCIAS

¹ Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Economia Mundial: Conjuntura recente e perspectivas para a economia internacional. Carta de Conjuntura n° 50 – Nota de Conjuntura 25 – 1° Trimestre de 2021. 13 pgs.
Url: https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/wp-content/uploads/2021/03/210329_cc50_nota_economia_mundial_2.pdf

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Economia Mundial: Conjuntura recente e perspectivas para a economia internacional. Carta de Conjuntura n° 51 – Nota de Conjuntura 26 – 2° Trimestre de 2021. 17 pgs.
Url:https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/210615_cc_51_nota_26_economia_mundial.pdf

² Youtube: Conjuntura e perspectivas da economia mundial pós-pandemia – com Prof. Luciano Coutinho.
Url: https://www.youtube.com/watch?v=bRYXvquXLjc&t=6253s

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