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Estado ou Mercado: uma adversidade enganosa

Matheus Alencastro*

Maio, 2021

Uma das dicotomias que se faz bastante presente nas discussões de maneira geral é a questão Estado versus Mercado. Isto é, se coloca reiteradamente que esses dois conceitos, enquanto instituições sociais, se caracterizam pelo antagonismo intrínseco de modo que um excluí totalmente o outro e vice-versa. Entretanto, o debate posto dessa forma se torna significativamente simplório ao não considerar as camadas de complexidade próprias da sociabilidade, como por exemplo a historicidade e a dialética. Por isso, o presente texto se dedica a começar a elucidar a miríade de elaborações que construíram o que hoje pode se entender pela referida relação a fim de indicar vias de pesquisa e investigação para o tema. Dessa maneira, pretende-se não mais que isso: questionar a dicotomia, enraizada no senso comum, entre Estado e Mercado. O problema está então elaborado da seguinte forma, há uma contradição intrínseca entre essas duas instituições sociais no desenvolvimento do sistema capitalista?

Enquanto texto que pretende apenas levantar dúvidas e não responde-las, segue-se que a aproximação ao tema se dará pela via das elaborações conceituais a respeito do tema. Leia-se aqui, a abordagem escolhida tentará elencar o que há de abstração no campo das ideias sobre esse tema, indicando espaço ainda para uma análise factual de como o próprio desenvolvimento se deu (e se dá), que oportunamente haverá de ser o complemento do presente texto. Há entretanto de se fazer a consideração sobre a escolha subjetiva que permeia esse caminho e que, havendo outro autor ou autora, a construção se daria certamente por vias diferentes. Além, é claro, de esclarecer o fato de este ser um texto que indica uma oportunidade de pesquisa, e não uma pesquisa em sua completude.

A formação de uma economia dita capitalista se dá com a decadência do sistema feudal e as transformações e revoluções que marcaram esse processo. A burguesia encontra o suporte intelectual nas elaborações iluministas para se impor como classe dominante vis-à-vis a nobreza e o clero, que mantinham uma estrutura de valores interdependentes sustentadores da coesão social e da estrutura de poder. Dada a “onda” iluminista, a legitimidade desse tipo de dominação é questionada, a partir da constatação, cada vez mais abrangente, de que a razão deve sobrepor-se aos misticismos. Dessa maneira, confrontar o poder do soberano conferido por Deus é condição para reafirmar o papel do homem, e principalmente da razão, como protagonistas dali em diante.

Nesse contexto, era necessária a elaboração de formas ideais de governo que teriam a sua sustentação moral pautada nos novos valores do homem. Por isso, o estado dado como era a época, era um “inimigo” a ser combatido porque simbolizava a antítese do ideal iluminista. Nesse sentido, era uma fonte de opressão para aqueles que estavam buscando estabelecer quais seriam os “direitos naturais do homem”. Para isso, por exemplo, John Locke, um iluminista a sua época, liberal e contratualista, nos apresenta a sua ideia de formação social. Nela, os homens abdicam de alguns direitos do seu estado natural para transferi-los ao estado contanto que este, “preserve, até onde for possível, os direitos à vida, à liberdade, à saúde e à propriedade de seus cidadãos”, processe e puna “os cidadãos que violem os direitos dos outros e busque o bem público até quando isso vá de encontro com os direitos individuais” (UZGALIS, 2020, tradução nossa) a fim de assegurar a paz social. Nesse sentido, temos a perspectiva de que, já estavam presentes os limites da atuação do estado nas ideias fundadoras do liberalismo porque este não mais teria a autonomia de um estado absolutista.

Na esteira da formulação do arcabouço liberal (em que nossa análise se concentra pois é nele que parece surgir o dilema aqui abordado), temos Adam Smith. Iluminista escocês, o filósofo elabora o tratado da nova “ciência” a partir dos conceitos de sua jurisprudência, aqui com o sentido de deveres do estado civil, como esclarece Coutinho (1990). Ou seja, para o pensador, existem obrigações que a instituição estado deve seguir dentre elas “[…] promover a opulência do estado. Isto produz o que chamamos de police. Quaisquer regulações relativas a comércio, negócio, agricultura, manufaturas do país são consideradas pertencentes à police.” (SMITH apud COUTINHO, p.107, 1990). Dentre as incumbências na esfera da police está a “barateza das provisões”. Coutinho (1990) nos apresenta então qual seria, a partir da lógica smitheana1, o significado desta tarefa específica do governo civil. A barateza das provisões é obtida por meio da abundância material que é alcançada fundamentalmente por meio da divisão do trabalho e a disposição inerente do ser humano às trocas. A partir do seu sistema de economia política, Smith constrói uma ideia de sociabilidade mercantil que, em última análise,

“A jurisprudência, teoria das regras da ação do governo, desdobra-se em um disciplina que se projeta para fora da esfera pública. A provisão de mercadorias em abundância (um dos objetivos da police) decorre de regras privadas de conduta. Não compete ao estado senão zelar para que a concorrência escoe por canais compatíveis com a soberania nacional e com a eticidade da vida humana, O liberalismo econômico apresenta-se como sistema produtor por excelência de riqueza e de bem comum.” (COUTINHO, p.112, 1990)

Note-se que o surgimento dos Estados modernos se molda a partir de ideias como as acima apresentadas, seja as jusnaturalistas, delimitadoras da função do público, ou à ética smitheana, onde os mecanismos de mercado são definidos como funções (naturalmente) individuais. Noberto Bobbio (2020) em Estado, Governo e Sociedade, delimita o assunto ao apontar para uma grande dicotomia entre o público e o privado. Dicotomia essa em que convergem tantas outras, uma das quais estamos tratando Estado (público) e Mercado (privado), entendidas também como relação entre desiguais e iguais, respectivamente. Ou seja, na primeira, há uma relação de subordinação e poder, dominante e dominado, na segunda “a sociedade natural tal como descrita pelos jusnaturalistas, ou a sociedade de mercado na idealização dos economistas clássicos, na medida em que é elevada a modelo de uma esfera privada contraposta à esfera pública, é caracterizada por relações entre iguais ou de coordenação.” (BOBBIO, p.17, 2020).

A partir da diferenciação entre iguais e desiguais começa-se a compreender a ubiquidade da dicotomia em diferentes áreas das ciências sociais. Entretanto, a analogia elaborada não é perfeita devido ao fato dos conjuntos apresentarem incongruências nas suas delimitações, característica da complexidade das relações sociais, onde instituições privadas, como por exemplo, a família que pode ser um ente privado, sob sua condição de inserção individual no âmbito do Estado, e, ao mesmo tempo, ser regida sob a lógica de uma justiça do mérito, no qual a autoridade pública se inspira2. Por isso, compete elucidar, segundo Bobbio (2020), duas análises, o primado do privado e o primado do público, que, a partir da definição de um conceito positivo para um e para o outro o negativo, podemos compreender as diferentes elaborações que moldaram a configuração atual de estado.

O primado do privado sobre o público se estrutura conceitualmente no sentido do primeiro ser o conceito positivo e, portanto, o segundo é delimitado pela negação dele. Dentro dessa lógica, contata-se que o direito privado surge no Império Romano primeiramente como o direito de excelência. Com isso, adquire o estado de direito da razão e tem a validade reconhecida pelo seu apelo às leis naturais, “através de um processo não diverso por meio do qual, muitos séculos mais tarde, a doutrina dos primeiros economistas – depois chamados de clássicos […] – será considerada como a única economia possível porque descobre, reflete e descreve relações naturais” (BOBBIO, p. 25, 2020). Outro ponto a respeito do primado do privado é a imposição de limites que se atribui aos poderes do soberano em relação à propriedade nos eixos fundadores do estado liberal. (BOBBIO, 2020)

Já o primado do público se estabelece a partir da constatação da necessidade do interesse coletivo se impor ao interesse do indivíduo. Isto é, essa proposição surge da derivação de que o interesse público não se reduz à soma dos interesses individuais mas tem sua própria lógica, elaborada por Aristóteles, citada por Hegel e finalmente por Bobbio (2020). Segue-se transcrita abaixo:

“Segundo ela, a totalidade tem fins não reduzíveis à soma dos fins dos membros singulares que a compõem e o bem da totalidade, uma vez alcançado, transforma-se no bem das suas partes, ou, com outras palavras, o máximo bem dos sujeitos é o efeito não da busca, mediante o esforço pessoal e o antagonismo, do próprio bem por parte de cada um, mas sim da contribuição que cada um juntamente com os demais dá solidariamente ao bem comum segundo as regras que a comunidade toda, ou grupo dirigente que a representa (por simulação ou na realidade), se impôs através de seus órgãos, sejam eles órgãos autocráticos ou democráticos.” (BOBBIO, p. 30, 2020)

Bobbio (2020), termina a sua exposição a respeito da “grande dicotomia” demonstrando que a invasão de uma esfera noutra, ou seja, da publicização do privado ou na privatização do público, é na verdade um processo que se balanceia dentro das dinâmicas sociais.

“O primeiro reflete o processo de subordinação dos interesses do privado aos interesses da coletividade representado pelo Estado que invade e engloba progressivamente a sociedade civil; o segundo representa a revanche dos interesses privados através da formação dos grandes grupos que se servem dos aparatos públicos para o alcance dos próprios objetivos. O Estado pode ser corretamente representado como o lugar onde esses conflitos se desenvolvem e se compõem, para novamente se decomporem e se recomporem, através do instrumento jurídico de um acordo continuamente renovado, representação moderna da tradicional figura do contrato social.” (BOBBIO, p. 33, 2020)

A partir das elucidações acima, pode-se concluir que as instituições modernas foram fundamentas por meio da natureza antagônica dos conceitos aqui discutidos. Isto é, o debate está colocado desde a constituição do que se conhece hoje por modernidade e é evidente que as relações sociais, dado o modelo atual, culminem em choques das esferas do público e do privado. Entretanto, é passivo de conclusão (para futuras investigações), de que tendo sido elaborado o Estado para proteção à propriedade e às “naturezas” do homem, que coincidentemente gravitam em torno das necessidades burguesas de acumulação, é que foi possível delegar à esfera individual dos iguais (privada, portanto) o sistema de mercado. Não obstante, ele só pode ser mantido com o apoio do Estado e a partir do seu aparato, funcionando como regulador e supervisor. Condição explicitada desde os iluministas.

O que se coloca então é que a pergunta (há uma contradição intrínseca entre essas duas instituições sociais no desenvolvimento do sistema capitalista?) deve ser reformulada para se entender qual é a configuração estatal que promove mais eficientemente o desenvolvimento capitalista. Ou seja, passando pelas considerações da dicotomia presente no debate, deve-se compreender que não é mais do que congruente à sociabilidade hoje proposta, a permanente disputa de uma esfera sobre a outra mas que tal disputa está colocada na própria natureza do que foi a elaboração de Estado na consolidação do ideal burguês. Tendo isso em vista, admite-se então o caráter essencialmente capitalista do Estado, porque nele está posto sua missão institucional. Compete então elucidar que, dentro desses moldes, não faz sentido admitir uma separação entre essas duas instituições. Elas se complementam e na verdade servem ao propósito (amplamente criticado atualmente, é necessário ressaltar) de prover o bem estar social por meio do aumento das condições materiais da sociedade. Nada mais improdutivo portanto é estabelecer conceitualmente mercado contra estado quando na verdade deve-se admitir mercado dado o estado. Isto é, o mercado é um meio para se alcançar os objetivos do Estado, que teoricamente representa a vontade social.

NOTAS

*Aluno de graduação em Economia na UFPR e estudante bolsista do PET Economia UFPR.

  1. Sobre isso, Coutinho sintetiza da seguinte forma, aqui transcrita: “1) caracterização do homem como um animal de necessidades sempre mutáveis e crescentes (o “refinamento dos gostos”), voltado à obtenção de conforto material e deleite espiritual; 2) atribuição da capacidade de satisfazer as demandas crescentes ao trabalho humano; 3) caracterização dos diversos tipos e especializações do trabalho, cuja integração se dá através da troca de mercadorias; 4) subordinação da noção de progresso e bem-estar material à capacidade de nos beneficiarmos do trabalho alheio; vale dizer, se o trabalho supre as necessidades, o trabalho especializado melhor as suprirá, e a ele teremos acesso por meio da troca de mercadorias.” (COUTINHO, p.109, 1990)
  2. Para mais sobre isso: ver capítulo 1: A Grande Dicotomia: Público/Privado em Estado, Governo e Sociedade.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, N., Estado, Governo, Sociedade: Fragmentos de um dicionário político. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2020.

COUTINHO, M., Lições de Economia Política Clássica. 1993. 228f. Tese (Livre Docência) – Departamento de Teoria Econômica, Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1990.

UZGALIS, W., “John Locke”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2020 Edition), Edward N. Zalta (ed.), Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/spr2020/entries/locke/. Acesso em: 20 mai. 2021.

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